Portulegal

Published on setembro 27th, 2014 | by Katia Suman

0

Portulegal # 98 – Carlos de Azevedo – 22.09.14 – radioeletrica.com

Portulegal 98 – Vida em Variações

 

Poeta, músico e cabeleireiro, não necessariamente nesta ordem, António Variações foi uma das figuras mais visíveis da contracultura lisboeta no final da década de 1970. Homossexual assumido, ousado e exuberante, ele buscava a liberdade de se expressar. Suas roupas coloridas (desenhadas por ele mesmo), os brincos, a barba longa e loura e o torso à mostra lhe conferia o aspecto de um tipo extravagante aos olhos dos mais quadrados, escandalizando a Lisboa ainda provinciana e conservadora daquela altura. Seu motto era estar “sempre ausente” para os mau-olhados, sempre ausente para os preconceituosos. Sem deixar-se abalar pela opinião alheia, António navegou contra as intempéries, como se fosse um Camões psicadélico do nosso tempo ou, quem sabe, uma versão lusitana de um Maluco Beleza que protagonizaria uma revolução de costumes tardia num Portugal que ainda andava muito engravatado, recém-acordado de um pesadelo de quase meio século de ditadura, atraso e isolamanto. Ao criar a sua arte de uma maneira sincera, espontânea e original; ao buscar o seu lugar e ao conseguir combinar influências diversas e até antagônicas, António Variações conseguiu engendrar uma linguagem musical própria, revolucionando a cena pop portuguesa e quebrando barreiras de preconceito e tabus.
Para o escritor João Miguel Tavares, “ninguém como ele se equilibrou na fina linha que separa a simplicidade do simplismo. Uma nota ao lado e suas músicas seriam pimbas. Um verso ao lado e as suas letras seriam foleiras. Mas ele nunca atirou ao lado. Foi pop e popular. Ia ao fundo da vida através das palavras mais simples. António Variações tinha a precisão dos génios. Morreu há 30 anos. Nunca mais voltou a aparecer alguém com a sua espantosa pontaria.”
Em 1975, António vai viver em Londres e, no regresso, depois de uma curta estada em Portugal, parte para Amsterdã, cidade onde viveria por mais de um ano e onde também aprenderia o ofício de cabeleireiro. Segundo o jornalista Pedro Teixeira, “fascinado sobretudo por aquilo que vivenciou na Holanda, país vanguardista e liberal, António Variações pretendeu, no regresso, transportar para Lisboa uma nova forma de viver e de sentir. No fundo, ele tinha o ensejo messiânico de mostrar às pessoas que era possível viver de acordo com aquilo que vai na alma, por mais fantasistas que fossem os devaneios de cada um, sem temor à censura dos outros. […] A imagem de António estava longe de ser um suporte fútil para a música: era um complemento direto, uma simbiose perfeita que permitia perceber melhor o alcance das suas “variações”. A homossexualidade não era para si motivo de reclusão ou de comportamento marginal e passou a estar em consonância com o seu caráter, pessoal e artístico. O seu apreço pela forma física, o esboço musculado de seu corpo, apenas servia para o tornar mais fascinante e afastado da ideia do homossexual versus frágil. Cheio de energia positiva e inspiradora, que arrecadara no estrangeiro, António Variações trabalha durante o dia a cortar cabelos e à noite avança destemidamente para o sonho de ser músico. A originalidade do seu estilo musical, onde configuravam com estranha precisão gêneros como o fado, o rock, o pop e o blues, rendeu-lhe um contrato com a gravadora Valentim de Carvalho, em 1978. Mas acabará por demorar quatro anos até gravar o primeiro disco, uma vez que lhe é pedido que grave temas dentro do folclore ou do pop, enquanto a sua predileção era enredar as suas músicas com vários estilos. Ultrapassado o entrave, António apresentou “Anjo da Guarda”, o seu primeiro LP, contendo dez temas assinados por si e onde se impuseram de imediato três trabalhos que personificam o semblante da sua carreira: “O corpo é que paga”, “Estou além” e “É pra amanhã”. “Dar e Receber” foi o nome escolhido para o seu segundo e último disco, editado em 1984. Doente e internado num hospital em Lisboa, António ainda assistiu à grande aceitação pública do tema “Canção de Engate”. Jaime Ribeiro descreveu os últimos momentos do irmão: “Quando, pela rádio, ouviu os primeiros temas na cama de hospital, António emociona-se e chora copiosamente. A sua saúde não melhora; pede-me para ir para Londres, uma vez que não acredita na medicina portuguesa, mas o seu estado de saúde não aconselha”. António Variações morreria a 13 de junho de 1984 (dia de Santo António e dia do nascimento de Fernando Pessoa), por complicações patológicas que foram associadas à Aids (sida), doença que começava então a alarmar o mundo. Naquela altura, poucos em Portugal perceberam a dimensão da perda, do muito que António Variações ainda tinha para produzir e surpreender. Mas o legado de suas músicas foi criando raízes e 20 anos depois de sua morte, em 2004, uma série de músicos consagrados formaram a banda Humanos e lançaram um álbum em sua homenagem com canções de António Variações, algumas delas nunca tinham sido gravadas, músicas deixadas em várias cassetes que se encontravam nas mãos da família do cantor. O projeto “Humanos” e outros artistas que cantaram as músicas de António Variações serão o assunto da próxima edição do Portulegal.

Músicas tocadas (todas de autoria de A.Variações, exceto “Povo que Lavas no Rio”, de Amália Rodrigues): Muda de vida (maquete) – Sempre ausente – Minha cara sem fronteiras – Estou além – O corpo é que paga – É pra amanhã – Povo que lavas no rio – O corpo é que paga (maquete) – Toma o comprimido – Maria Albertina (maquete) – Maria Albertina (Humanos) – Canção de Engate – Dar e Receber – Anjinho da Guarda (gravada ao vivo no clube Rock Rendez-Vous)
Trecho do filme sobre o António, “Variações”, com voz e caracterização do ator Sérgio Praia: http://goo.gl/exF0f2

Tags: António Variações, contracultura, rock tuga, música portuguesa, Humanos

Tags: , , , ,


About the Author



Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Back to Top ↑